Resumo: As pesquisas feitas com ayahuasca, composto de origem amazônica, integram o que se convencionou chamar de “Renascimento Psicodélico”, tornando o Brasil referência no tema. O artigo mostra como a substância vem oferecendo uma perspectiva de cura para transtornos como a depressão, ao mesmo tempo em que reflete sobre o uso do chá fora de seu contexto originário.
“Era inefavelmente maravilhoso, maravilhoso quase a ponto de ser terrível. E tive, de repente, um leve indício de como os loucos devem se sentir”, definiu o escritor Aldous Huxley, no clássico ensaio “As Portas da Percepção”, de 1954, obra que narra sua experiência com a mescalina, substância psicodélica encontrada no cacto peiote.
A associação com a esquizofrenia e as possíveis aplicações dos psicodélicos na psiquiatria sempre despertaram o interesse de pesquisadores de diversas áreas. Entre os anos de 1949 e 1966, principalmente nos EUA, estudos com substâncias do tipo tiveram um crescimento exponencial — grande parte por conta da farta quantidade de LSD disponibilizada pela farmacêutica Sandoz, detentora da patente da substância, descoberta em 1943 pelo químico suíço Albert Hofmann. Os estudos sobre os estados da mente pareciam promissores.
Mas em 1971 houve um apagão. Com o início da Guerra às Drogas, declarada pelo presidente norte-americano Richard Nixon, e o pânico moral instaurado como política, os psicodélicos foram criminalizados.
Apesar de alguns estudos esporádicos ao longo do tempo, foi só nos anos 2000 que uma nova onda começou a despontar na ciência. O jornalista Michael Pollan (2018), autor de “Como Mudar sua Mente”, obra que mapeia o movimento recente, considera o ano de 2006 como um marco do que se convencionou chamar de “Renascimento Psicodélico”. Isso por conta de três fatores: o simpósio em comemoração ao centenário de Albert Hofmann (que morreu aos 102 anos); a publicação de um artigo que investigou a relação da psilocibina (dos cogumelos) com a experiência espiritual, o primeiro do tipo em mais de 40 anos; e a liberação, nos EUA, do uso do chá de ayahuasca para os rituais da União do Vegetal (UDV), religião brasileira criada em Porto Velho por José Gabriel da Costa, conhecido como Mestre Gabriel, em 1961.
Desde então, esse chá amazônico de origem indígena vem ganhando cada vez mais destaque, tornando o Brasil um dos pólos mais importantes de pesquisas na área da ciência psicodélica, já que, diferente da maioria dos países em que as substâncias do tipo são proibidas, no Brasil o uso religioso da ayahuasca é permitido desde 1987, o que facilita sua pesquisa.
No Brasil o uso religioso da ayahuasca é permitido desde 1987, o que facilita a realização de pesquisas com a bebida (Imagem: El País).
O efeito psicodélico
Apesar de não haver registros, acredita-se que, entre os grupos indígenas da Amazônia, o uso do chá seja feito há milênios. Entre os ocidentais, ele ganhou popularidade através de religiões brasileiras como o Santo Daime, a UDV e a Barquinha, a partir das primeiras décadas do século 20. Nos últimos anos, adeptos do neoxamanismo — práticas xamânicas feitas em contexto urbano, ou fora do contexto indígena — têm difundido o uso do chá em grandes cidades do Brasil e do mundo. Ao mesmo tempo, é comum que grupos indígenas, como os Yawanawá e os Huni Kuin, saiam de suas aldeias e marquem presença em rituais urbanos, fortalecendo o intercâmbio cultural e estabelecendo a ayahuasca como uma importante ponte sociopolítica.
Ilustração de Bira Dantas.
Não existe, portanto, um uso único para o chá. Diferentes tradições estabelecem formas variadas de relação com a bebida — enquanto religiões como o Santo Daime, por exemplo, priorizam a hierarquia entre seus membros e seguem uma linha dogmática cristã, os adeptos do neoxamanismo podem misturar práticas orientais com filosofias de matriz africana em um mesmo trabalho. Por isso, seu preparo também varia, o que influencia na concentração e nas doses servidas. Ainda assim, no geral, a bebida costuma ser feita de forma cerimonial e artesanal, através da misturado cipó Banisteriopsis caapi (popularmente conhecido como “jagube” ou “mariri”) com o arbusto Psychotria viridis (“chacrona”, ou “rainha”).
A ayahuasca costuma ser feita de forma cerimonial e artesanal, através da mistura do cipó Banisteriopsis caapi (popularmente conhecido como “jagube” ou “mariri”) com o arbusto Psychotria viridis (“chacrona”, ou “rainha”).
O efeito psicodélico é garantido pelas moléculas de DMT (dimetiltriptamina), presente nas folhas do arbusto, que chegam ao cérebro com a ajuda dos alcalóides presentes no cipó ao ser ingerida oralmente. Estes alcalóides impedem que enzimas, as monoamino oxidases, façam a digestão do DMT no estômago, formando, assim, um casamento perfeito entre as plantas. Os efeitos levam de 30 a 45 minutos para surgirem, e podem durar até quatro horas. Ainda é comum que, durante os rituais, sejam servidas até três doses do chá, dependendo da intensidade que a pessoa quer dar à experiência. Entre os efeitos observados, estão: náusea, vômito, diarréia, suor e choro — os quais, muitas vezes, são interpretados como processos de limpeza e purificação pelos adeptos do chá.
Mas também existem efeitos considerados mais agradáveis, a exemplo das distorções visuais, também conhecidas como “mirações”, que promovem visões de mandalas coloridas e formas geométricas, além de manifestações de animais, “seres da floresta” e divindades, de acordo com a experiência individual. Diferente das alucinações, que ocorrem de olhos abertos, as mirações da ayahuasca, no geral, ocorrem de olhos fechados.
Além dos relatos de experiências místicas, outros relatos comuns incluem a melhora na saúde mental, no bem-estar e mudanças no estilo de vida. Mas é, principalmente, pelo potencial terapêutico antidepressivo que a ayahuasca vem se destacando.
Em 2017, pesquisadores do Instituto do Cérebro, da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, publicaram o primeiro ensaio clínico controlado a testar uma substância psicodélica para depressão em pacientes resistentes a tratamentos convencionais. Conduzido pela pesquisadora Fernanda Palhano-Fontes, com coordenação do físico Dráulio de Araújo, o estudo avaliou 29 pacientes que tomaram placebo ou ayahuasca. Uma semana depois da ingestão, os pesquisadores constataram que, dos 14 participantes que tomaram o chá, 9 apresentaram melhoras significativas dos sintomas do transtorno (Palhano-Fontes et al. 2019).
A pesquisadora Fernanda Palhano-Fontes durante a participação no terceiro Encontro Psicodélico "Pesquisas biomédicas com Ayahuasca".
“No geral, este estudo traz nova evidência de apoio à segurança e ao valor terapêutico da ayahuasca ministrada em um contexto (setting) apropriado para auxiliar no tratamento da depressão”, escreveram os pesquisadores na conclusão do trabalho. Em um mundo no qual, segundo a Organização Mundial de Saúde [OMS] (2017), mais de 300 milhões de pessoas sofrem de depressão, e das quais 100 milhões são resistentes aos antidepressivos tradicionais, os achados da pesquisa oferecem uma alternativa a ser investigada com profundidade.
Anteriormente, Palhano-Fontes (2015) já havia pesquisado como se davam as conexões cerebrais de usuários experientes com ayahuasca. Assim como na meditação e no uso de outros compostos psicodélicos, como LSD e psilocibina, ela mostrou, através de ressonância magnética, que a ayahuasca causa uma redução na atividade da rede de modo padrão (DMN, na sigla em inglês).
No livro “Psiconautas”, que narra a trajetória da ciência psicodélica brasileira, o jornalista Marcelo Leite (2021) compara a DMN a um serviço de TV paga. “A DMN se mostra um tanto turbinada em transtornos mentais, como a depressão, quando o indivíduo não consegue se livrar de pensamentos negativos sobre a vida. Seria como se uma pane no sistema de serviço pago restringisse o acesso a todos os outros canais e a pessoa ficasse condenada a assistir só a alguns, sem comédias, filmes românticos, documentários, notícias ou musicais, por exemplo. Nos casos graves, só passam biografias de gente infeliz, histórias de guerras sangrentas e futurologia distópica”, escreveu. “Especula-se que o efeito terapêutico dos psicodélicos venha ao menos em parte da capacidade de relaxar a DMN, ou seja, seguindo a analogia, de restabelecer o acesso ao restante da programação.”
O jornalista Marcelo Leite, autor do livro "Psiconautas", em sua participação no sétimo Encontro Psicodélico "Psicodélicos na mídia: abrindo as portas de redação".
O segredo da floresta
Os efeitos subjetivos do chá também inspiram uma série de estudos. Por exemplo, durante sua pesquisa de doutorado em saúde mental, na Unicamp, o psicofarmacologista Lucas Maia (2020), coordenador do site Ciência Psicodélica, resolveu investigar como a experiência com a ayahuasca poderia beneficiar a saúde mental e influenciar o modo como pessoas gravemente adoecidas compreendem o seu próprio adoecimento.
Com orientação do psiquiatra Luís Fernando Tófoli, ele entrevistou pessoas que haviam feito uso ritual da bebida enquanto se tratavam de doenças como câncer e esclerose múltipla. “Com base nos resultados, concluí que a experiência ritual com ayahuasca pode facilitar a aceitação da doença, por meio de múltiplos processos psicológicos, com destaque para a ressignificação da doença. Em conjunto com melhoras na saúde mental e a diminuição do medo da morte, a experiência com ayahuasca favoreceu um relacionamento mais equilibrado com a doença e com o tratamento médico. Esses resultados reforçam a possibilidade de se empregar a ayahuasca e outras substâncias psicodélicas como ferramentas terapêuticas para reduzir o sofrimento psicológico gerado pela experiência de uma doença grave”, detalhou Maia (2021).
Apesar dos resultados animadores, vale lembrar que a ayahuasca não é infalível. Pessoas com histórico ou pré-disposição genética para bipolaridade e esquizofrenia não devem tomar o chá, já que podem desencadear surtos psicóticos. Além disso, aqueles que usam antidepressivos com inibidores da monoamina oxidase (IMAO) podem desencadear reações ameaçadoras à vida, devido ao aumento da atividade de serotonina no sistema nervoso central.
Mas os desafios e os benefícios da ayahuasca transcendem as visões padrões. Para compreender melhor sua pluralidade e subjetividade, é preciso considerar uma interação multidisciplinar que vá além do meio acadêmico e que dialogue também com outros tipos de saberes.
“Existe muita gente que pesquisa ayahuasca dentro da academia, nas áreas da medicina, farmácia, bioquímica, antropologia; muitos religiosos e líderes de culto que defendem o reconhecimento de suas ‘novas tradições’, e muitos entusiastas à procura de uma ‘conexão ancestral’ que possa ‘salvar a humanidade’. Poucos deles têm ciência da complexidade do desafio vivido pelos povos indígenas”, escreveu, em um artigo, a professora Daiara Tukano (2021), mestre em Direitos Humanos, com especialização em memória e verdade dos povos indígenas, pela Universidade de Brasília. “Talvez mais importante que decifrar a química do kahpi [ayahuasca], como funciona no cérebro e quem pode comprar mais ou vender melhor seja aprender a respeitar e celebrar nossa diversidade.”
Ter essa consciência do uso originário do chá é essencial para que não se corra o risco de que pesquisadores ocidentais reproduzam um modelo explorador e colonial de produção de conhecimento, que em nada dialoga com o avanço das pesquisas, nem com a riqueza da experiência psicodélica da ayahuasca.
Este artigo foi publicado originalmente na edição número 2 da Revista Quimera, da ABRAMD Clínica – São Paulo, grupo vinculado à Associação Brasileira Multidisciplinar de Estudos sobre Drogas.
Autor
Referências
Huxley, A. L. (2015) As portas da percepção. Rio de Janeiro: Biblioteca Azul.
Leite, M. (2021). Psiconautas: Viagens com a ciência psicodélica brasileira. São Paulo: Editora Fósforo.
Maia, L. O. (2020) Uso ritual da ayahuasca durante o tratamento de doenças físicas graves: um estudo qualitativo. Tese de doutorado, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, SP, Brasil
Maia, L. O. (2021) Ayahuasca, doenças graves e o mistério da morte. Recuperado em 12 de setembro de 2021 de: https://www.cienciapsicodelica.com.br/post/ayahuasca-doencas-misterio-da-morte
Organização Mundial de Saúde (OMS) (2017). Depression and Other Common Mental Disorders.Recuperado em 12 de setembro de 2021 de: http://apps.who.int/iris/bitstream/handle/10665/254610/WHO-MSD-MER-2017.2-eng.pdf;jsessionid=AFEA41CBB2AF02DA19544C0936C92AB2?sequence=1
Palhano-Fontes, F., Andrade, K. C., Tofoli, L. F., Santos, A. C., Crippa, J. A. S., Hallak, J. E., … & de Araujo, D. B. (2015). The psychedelic state induced by ayahuasca modulates the activity and connectivity of the default mode network. PloS one, 10(2), e0118143.
Palhano-Fontes F et al. (2019). Rapid antidepressant effects of the psychedelic ayahuasca in treatment-resistant depression: a randomized placebo-controlled trial. Psychological Medicine 49(4): 655-663.
Pollan, M. (2018). Como Mudar Sua Mente: O que a nova ciência das substâncias psicodélicas pode nos ensinar sobre consciência, morte, vícios, depressão e transcendência. Rio de Janeiro: Editora Intrínseca.
Tukano, D. (2021). Ayahuasca e os desafios dos conhecimentos indígenas diante da globalização. Recuperado em 12 de setembro de 2021 de: https://www.daiaratukano.com/post/ayahuasca-e-os-desafios-dos-conhecimentos-ind%C3%ADgenas-diante-da-globaliza%C3%A7%C3%A3o
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