[Resumo]: Estudo sugere que as motivações relacionadas ao uso da planta estão associadas a diferentes práticas, padrões de uso e efeitos subjetivos a curto e a longo prazo. Motivações espirituais foram associadas a consequências positivas
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Que a Cannabis spp. (cânabis [1] ou maconha) é uma das plantas psicoativas utilizadas há mais tempo pela humanidade, você já sabe. E também que os seus usos variam historicamente desde para a produção de fibras, como para a alimentação – sementes de cânabis são ricas em ácidos graxos essenciais e proteínas – e com propósitos medicinais, espirituais e ‘recreativos’.
O uso espiritual dessa planta se destacou primeiramente na Índia, onde foi associada à mitologia Hindu. Mais tarde, na Jamaica, foi integrada à religião Rastafari. Durante a década de 1960, o movimento hippie atribuía à cânabis valores espirituais.
O uso espiritual da cânabis se destacou primeiramente na Índia, onde foi associada à mitologia Hindu. Mais tarde, na Jamaica, foi integrada à religião Rastafari. Durante a década de 1960, o movimento hippie atribuía à cânabis valores espirituais.
Contudo, o seu uso nas civilizações ocidentais modernas tem se caracterizado principalmente por motivações chamadas ‘recreativas’ – uma definição genérica daquilo que englobaria propósitos lúdicos e hedonísticos, mas que se confunde e se inter-relaciona a propósitos terapêuticos [2], como relaxamento e alívio de ansiedade.
Antes, vale salientar que neste texto não busco atribuir valores positivos ou negativos a algum tipo de uso ou outro. Entendo que – e isso também é reforçado nos resultados do estudo aqui apresentado – os tipos de uso estão relacionados a diferentes propósitos; contudo, uma mesma pessoa pode utilizar uma substância psicoativa como a maconha com motivações que variam a depender do momento e do contexto (set e setting). Assim, considero que, muitas vezes, diferentes motivações podem coexistir e se inter-relacionar.
Investigando as motivações relacionadas ao uso da cânabis, o pesquisador Petter Grahl Johnstad, da Universidade de Berger (Noruega), realizou um levantamento entre 319 usuários localizados via internet em comunidades virtuais, de diferentes nacionalidades. Ele se perguntava se pessoas que atribuíam motivações espirituais ao uso da planta – que, para facilitar a leitura, passarei a denominar como ‘usuários espirituais’ – teriam práticas, experiências e efeitos diferentes de pessoas que utilizam a planta para propósitos exclusivamente recreativos.
O pesquisador Petter Grahl Johnstad e seu estudo publicado na Journal of Cannabis Research.
De fato, a sua hipótese se confirmou. Enquanto a maior parte dos usuários em geral relatou principalmente motivações ligadas à diversão e à socialização, os usuários espirituais relataram com maior frequência motivações relacionadas à auto exploração psicológica, autodesenvolvimento, insight, curiosidade, aventura e melhoras relacionadas a problemas pessoais. Eles também consideram o uso da cânabis como tendo consequências positivas para a sua saúde psicológica e prática espiritual, ao passo que o uso com motivações escapistas (esquecer ou escapar de problemas pessoais) foi relacionado a consequências negativas à saúde psicológica, felicidade subjetiva e habilidade de se relacionar com as pessoas, de acordo com percepção dos usuários.
No estudo, os usuários espirituais relataram com maior frequência motivações relacionadas à auto exploração psicológica, autodesenvolvimento, insight, curiosidade, aventura e melhoras relacionadas a problemas pessoais.
A análise estatística levou em consideração fatores de confusão, incluindo idade, sexo, grau de escolaridade, traços de personalidade e uso de outras substâncias, indicando que as diferenças encontradas são independentes destes fatores.
Buscando compreender mais profundamente o fenômeno, o pesquisador também realizou entrevistas qualitativas com 29 usuários espirituais. Interessantemente, uma parte relatou que o uso diário ou quase-diário diminuía o impacto das experiências com o uso da cânabis, mas que este uso continuava a ter importância espiritual. Por outro lado, alguns usuários descreveram que diminuíram a sua frequência de uso com o intuito de maximizar suas experiências e manter o valor espiritual da prática. Porém, esta diferença na frequência de uso não foi demonstrada estatisticamente no braço quantitativo do estudo, o levantamento, que encontrou padrões semelhantes de uso no último ano entre usuários recreativos e espirituais.
As entrevistas também revelaram que os usuários espirituais frequentemente adotam práticas meditativas ou introspectivas durante o uso da maconha. Alguns autores discutem a capacidade de tais práticas intensificarem a experiência e os efeitos subjetivos da planta (Gray, 2017).
O estudo evidenciou também que os usuários espirituais frequentemente adotam práticas meditativas ou introspectivas durante o uso da maconha.
Os resultados indicaram também que o uso espiritual da cânabis se assemelha em certa medida ao uso de psicodélicos clássicos, também denominados como ‘enteógenos’, considerando as motivações ligadas à auto-exploração, insight e experiências espirituais ou místicas. No entanto, os participantes em geral – mas não todos – atribuíram uma intensidade menor às experiências espirituais com cânabis, tornando possível um uso mais frequente dela em comparação a outros psicodélicos como, por exemplo, cogumelos mágicos, ayahuasca ou LSD.
Mas é importante notar as limitações do estudo, que foi realizado com participantes em uma amostra relativamente pequena e que não é representativa a nível populacional. Ou seja, a rigor os achados não podem ser generalizados para os usuários de cânabis como um todo. Além disso, o método de seleção dos participantes favoreceu a participação de pessoas com inclinações favoráveis ao uso da cânabis, de modo que o autor reconhece que há um viés para resultados positivos.
Apesar disso, considerando a natureza exploratória da pesquisa, este estudo descreve características sobre o uso de cânabis com base em diferentes tipos de motivações e faz comparações interessantes entre usuários recreativos e espirituais, gerando hipóteses a serem testadas futuramente em estudos maiores.
Ademais, o trabalho dá atenção a um aspecto que tem sido frequentemente ignorado nos estudos sobre o uso da maconha na modernidade, destacando que motivações espirituais continuam sendo prevalentes entre os usuários e merecem ser melhor compreendidas, dado que são práticas milenares e com impactos significativos sobre os efeitos psicológicos e, possivelmente, farmacológicos e terapêuticos.
[1] Adotamos aqui a grafia cânabis seguindo o mesmo raciocínio utilizado por Filev, R. no livro Introdução ao associativismo canábico (PBPD; 2020; p.5) no livro que aqui citamos: “A escolha pelo verbete cânabis nesta publicação segue as recomendações do acordo ortográfico da língua portuguesa. Pelo sistema de busca VOLP da Academia Brasileira de Letras, o verbete registrado é cânabis e quando se busca canábis o dicionário remete à cânabis, assim como ocorre quando a busca é feita no dicionário Houaiss. O verbete em questão é uma adequação do termo de origem grega, também proparoxítona, com acento na primeira sílaba (...). No inglês, o uso do verbete para designar a planta é cannabis, que também leva a tônica na primeira sílaba. Ainda de acordo com a regra ortográfica da língua portuguesa, não existem verbetes com duplo 'ene' (nn), portanto seria estrangeirismo optar por cannabis. É fato que o emprego do termo canábis é muito mais co mum e reconhecido inclusive pelos dicionários de referência que o remetem à cânabis. Entendemos, por fim, que ambas as formas são aceitas e optamos por uma delas para facilitar a leitura.”
[2] Aqui considerados como aqueles relacionados à saúde mental, em distinção ao uso medicinal relacionado aos efeitos fisiológicos aplicados a doenças físicas ou neurológicas.
Por Lucas Maia, PhD.
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Referências
Johnstad P. G. (2020). Cannabis as entheogen: survey and interview data on the spiritual use of cannabis. Journal of cannabis research, 2(1), 30. https://doi.org/10.1186/s42238-020-00032-2
Gray S (2017). Cannabis and spirituality (Rochester: Park Street Press).
Um novo estudo foi publicado recentemente, após a publicação deste texto. Os resultados, de forma geral, confirmam os achados anteriores. Link do novo estudo (infelizmente, o acesso é restrito a assinantes da revista): https://www.tandfonline.com/doi/full/10.1080/02791072.2021.1941443