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Foto do escritorNathan Fernandes

O que acontece quando palestinos e israelenses tomam ayahuasca juntos

Atualizado: 4 de set. de 2021


Resumo: Um estudo investigou como os psicodélicos podem contribuir para criar uma atmosfera de paz. Em particular, como a ayahuasca pode afetar pessoas de diferentes culturas que vivem em conflito prolongado. Para isso, os pesquisadores se basearam em entrevistas qualitativas feitas com israelenses e palestinos que participaram juntos de cerimônias com o chá amazônico.


 

Um judeu israelense, ex-integrante do exército de Israel, relatou a visão que teve durante uma cerimônia com ayahuasca. Na miração, ele se vê invadindo a casa de uma família palestina para capturar um suposto terrorista. Em meio à gritaria e confusão, ele prende um dos palestinos e o leva embora numa viatura. Tudo fica escuro. De repente, o ex-combatente se vê como um membro da família palestina, que ele havia acabado de desmembrar. Alguém bate na porta. “Eu vejo o cara que eu deveria prender correndo da sala, então a avó, ou uma outra pessoa, abre a porta, e eu me vejo, como um Robocop ou algo do tipo, usando uma máscara de esqui. Vejo meus olhos claramente. Olho para mim mesmo e congelo de medo”, recorda.


A sensação, segundo ele, foi desencadeada por um grupo de palestinos que chorava durante a mesma cerimônia em que participava. “Estava claro para mim que eles não choravam porque estavam se lembrando de um parente morto ou algo assim, eles choravam a dor de um povo, e eu estava conectado àquela dor. Eu causei a dor daquele povo. Então, desmoronei. Não aguentava ouvi-los chorando. E a ayahuasca começou a me mostrar muitas coisas, as quais não consigo descrever visualmente, era só essa dor insana, ódio e lamento pelo mal que eles experienciaram.”


O depoimento faz parte da estudo “Relational Processes in Ayahuasca Groups of Palestinians and Israelis”, publicado em 2021 no periódico “Frontiers in Pharmacology”, conduzido pelo psicólogo Leor Roseman, do Imperial College London, com participação de pesquisadores como Rick Doblin e Robin Carhart-Harris.



O estudo “Relational Processes in Ayahuasca Groups of Palestinians and Israelis”, publicado no periódico “Frontiers in Pharmacology”.



A ideia dos cientistas era investigar, de modo geral, como os psicodélicos poderiam contribuir para a criação de uma atmosfera de paz sustentável; e, em particular, como pessoas de diferentes culturas, que vivem em conflito prolongado, poderiam ser afetadas pela experiência com essas substâncias. Para isso, os pesquisadores se basearam em entrevistas qualitativas feitas com israelenses e palestinos que participaram juntos de cerimônias variadas com ayahuasca.


A bebida de origem amazônica foi escolhida porque os pesquisadores acreditam que, apesar de ainda serem impactadas pelo colonialismo, as comunidades indígenas têm conseguido estabelecer um diálogo amplo com a sociedade ocidental através do chá, fazendo com que essa bebida milenar seja percebida como uma importante ponte sociopolítica, fator essencial para o objeto do estudo.



A ayahuasca foi escolhida para este estudo porque os pesquisadores acreditam que as comunidades indígenas têm conseguido estabelecer um diálogo amplo com a sociedade ocidental através do chá, fazendo com que essa bebida milenar seja percebida como uma importante ponte sociopolítica, fator essencial para a pesquisa.



No total, foram feitas 31 entrevistas. Entre os entrevistados, estavam 13 árabes palestinos (cinco mulheres e oito homens, dos quais sete vinham de um contexto cristão e seis de um contexto muçulmano; nove deles tinham cidadania israelense, e quatro viviam na Cisjordânia), e 18 judeus israelenses (oito mulheres, nove homens e uma pessoa não binária). Os participantes tinham entre 28 e 59 anos e pertenciam a cinco grupos ayahuasqueiros diferentes, que usavam em suas cerimônias elementos judaicos, muçulmanos, cristãos, budistas e hinduístas. Apesar dos palestinos serem minoria nas reuniões, todos já tinham experiência com o chá.


Conexões psicodélicas


Três temas principais emergiram das entrevistas feitas pelos pesquisadores. O primeiro deles foi o que chamaram de “conexão baseada no sentimento de unidade”. Durante as cerimônias, vários participantes relataram uma sensação de elevação e unidade com o todo, que transcendia as diferenças sociopolíticas e culturais. Como afirmou uma mulher palestina: “Você atinge aquele ponto em que não vê árabes nem judeus. Não há nada, não há linguagem, não há religião, não há gênero, nada”.


“Você atinge aquele ponto em que não vê árabes nem judeus. Não há nada, não há linguagem, não há religião, não há gênero, nada”. - Participante do estudo

O segundo ponto comum observado foi o que os pesquisadores chamaram de “conexão baseada no reconhecimento e na diferença”. Para isso — assim como se observa nos rituais indígenas ou neoxamânicos da América do Sul —, as músicas e os rezos (tanto em árabe quanto em hebraico) foram um importante condutor.


Mesmo havendo certa resistência, a princípio, o reconhecimento do que era dito se deu através da “frequência” e da “vibração” dos idiomas falados, como afirmou um participante palestino: “Absorver o hebraico ou uma língua que eu não entendia foi um desafio. Mas isso foi no começo, antes de prestar atenção à vibração das palavras. Porque o significado delas pode ser percebido de forma positiva ou negativa. Então, o cerne das palavras está em como eu as recebo e não no seu significado”.


Outro depoimento, de um participante israelense não binário, mostra como as frequências sonoras facilitaram a integração espiritual e o intercâmbio cultural. “O som me tocou num lugar onde havia medo, onde havia o antigo padrão que dizia ‘eles estão cantando em árabe, isso é assustador’. Na verdade, isso é curador! Pensei: “Quem fez isso comigo, quem levou embora a habilidade de aproveitar essa cura por todos esses anos?’.”


As “revelações baseadas em conflitos” fazem parte do terceiro ponto observado pelos pesquisadores, nas quais os participantes revisitam histórias ou traumas pessoais através de visões. Diferente da “conexão baseada no sentimento de unidade”, que transcende as diferenças, essas revelações as enfatizam, e estão relacionadas às identidades e os locais de conflito.


Em uma visão compartilhada, um homem árabe que foi educado em Israel, e era um antigo apoiador da direita israelense — algo pouco convencional para um árabe —, diz que se livrou da “lavagem cerebral” pela qual passou durante sua vida, depois de uma cerimônia.


Durante o encontro, que aconteceu em uma antiga casa árabe na qual viviam religiosos israelenses (algo comum depois que os árabes foram forçados a deixar suas casas na guerra de 1948), ele teve uma visão que o fez se reconectar com suas origens. “Eu sei que você frequentou escolas israelenses, e que você odeia tudo que tem a ver com os árabes. Mas a história é diferente. Você ouviu um lado, mas não ouviu o outro”, disse a visão de uma senhora árabe, segundo relatou o participante, que compartilhou sua experiência durante a cerimônia, e acabou ajudando a reforçar a conexão intercultural entre os outros presentes, bem como o reconhecimento das injustiças históricas.


Apesar dos depoimentos muitas vezes relacionados a questões sociopolíticas, vale ressaltar que discussões de cunho político-partidárias não eram estimuladas. Além disso, apesar do estudo ter como foco a construção da paz entre pessoas de culturas diferentes em conflito prolongado, os grupos investigados não se reuniram com essa intenção. Suas motivações estavam relacionadas ao crescimento pessoal e espiritual. Por isso, os pesquisadores incentivam que sejam feitas futuras investigações direcionadas.


Outra limitação importante levantada pelos cientistas é que o estudo foi realizado com participantes de cerimônias neoxamânicas, as quais incentivam a participação ativa dos presentes, seja sugerindo músicas ou compartilhando rezos. Ou seja, não é possível afirmar que todas as práticas com ayahuasca alcancem o mesmo resultado do estudo, uma vez que as formas de condução das cerimônias variam. Além disso, a população do estudo era relativamente homogênea, sendo formado por pessoas da classe média alta interessadas em assuntos espirituais. Com isso, também não é possível concluir que o mesmo resultado possa ser extrapolado para a população em geral.


Ao direcionar a atenção em como o contexto político e cultural afeta as pessoas durante uma experiência com ayahuasca, a pesquisa se difere da maioria dos estudos que são focados em experiências individuais. Para os pesquisadores, esse processo pode elucidar a ligação entre estados psicológicos pessoais e contextos sociopolíticos mais amplos, uma vez que substâncias psicodélicas são historicamente relacionadas a movimentos que questionam estruturas sociais.


Nesse sentido, vale notar que, conforme observado no trabalho, quando as estruturas terapêuticas são “apolíticas”, no geral, os participantes rejeitam ou evitam examinar seus contextos sociopolíticos. Segundo os pesquisadores, para que as pessoas consigam perceber as diferenças entre elas “derreterem” — como afirmou um participante árabe da Cisjordânia — de uma forma que a construção da paz com psicodélicos seja efetiva, é preciso que haja um ambiente não apenas preocupado em libertar a mente, mas também a realidade material.


 

Por Nathan Fernandes, Jornalista.


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