Resumo: O uso de psicodélicos para lidar com o sofrimento de pessoas com doenças graves, ou no fim da vida, é um dos campos que mais despertam interesse da comunidade científica. Evidências sugerem que a terapia com essas substâncias têm efeitos positivos, principalmente quando relacionados aos sintomas de natureza psicológica e espiritual, afirma a pesquisadora do tema, Ana Cláudia Mesquita Garcia, enfermeira paliativista, professora na Escola de Enfermagem da Universidade Federal de Alfenas e líder do Centro Interdisciplinar de Estudos em Cuidados Paliativos. “Devemos discutir essa possibilidade porque em muitos lugares as pessoas morrem em profundo sofrimento desnecessariamente”. Veja mais na entrevista que ela concedeu à Psicodelicamente.
Quais são as principais vantagens do uso de psicodélicos nos cuidados paliativos?
As maiores vantagens do uso de psicodélicos nos cuidados paliativos estão relacionadas ao potencial terapêutico dessas substâncias no controle de sintomas angustiantes que acometem pessoas que vivenciam sérios sofrimentos relacionados à saúde decorrentes de doenças graves, inclusive aquelas pessoas que estão em fase de terminalidade da doença ou em fase de fim de vida.
De acordo com a OMS (Organização Mundial da Saúde), um dos principais objetivos do cuidado paliativo é o alívio do sofrimento de pessoas que enfrentam doenças graves e de suas famílias. E quando falamos em alívio do sofrimento em cuidados paliativos, estamos falando do alívio da dor total — conceito proposto inicialmente por Cicely Saunders, pioneira nos cuidados paliativos modernos ou moderno movimento hospice —, ou seja, do alívio da dor em todas as suas dimensões: física, psicológica, social e inclusive espiritual. E, de acordo com resultados de diversos estudos que vêm sendo realizados desde meados da década de 1960, sobre o potencial terapêutico de psicodélicos em pessoas com doenças graves, há indícios de que essas substâncias podem ser úteis no controle de diversos sintomas, especialmente nos sintomas psicológicos e espirituais. Devemos discutir essa possibilidade porque em muitos lugares as pessoas morrem em profundo sofrimento desnecessariamente.
Os profissionais precisam ser educados para entender esse sofrimento?
Os profissionais de saúde se preocupam muito com a qualidade de vida, mas, com frequência, desconhecem o conceito de qualidade de morte. Muitas vezes, nossa formação nos prepara para cuidar da doença e não da pessoa que tem a doença.
Mas acontece que chega um momento em que a cura do corpo já não é mais possível, um momento em que a despeito das terapêuticas utilizadas a doença vai seguir seu curso natural, culminando com a morte. E, geralmente, neste momento, os profissionais de saúde não sabem como lidar com tal situação. Por isso, no momento em que não há mais o que fazer pela doença, muitos profissionais de saúde se confundem achando que não há mais nada a fazer pela pessoa — na verdade, é o contrário, mesmo quando não há mais o que fazer para alterar o curso da doença, sempre há muito o que fazer para cuidar da pessoa com o intuito de aliviar seu sofrimento.
Como esse assunto é tratado pelos profissionais de saúde no Brasil?
Em dezembro de 2021, foi publicado um estudo, conduzido pelo pesquisador Eric Finkelstein, que teve como objetivo avaliar e comparar a qualidade de morte entre 81 países. Ao todo, 13 indicadores foram utilizados para avaliar a qualidade da prestação de cuidados de fim de vida, como, por exemplo: atendimento de necessidades espirituais, religiosas e culturais do paciente pelos profissionais de saúde; controle de sintomas; oferta de tratamento empático e gentil pelos profissionais de saúde; dentre outros.
De 81 países avaliados, o Brasil ficou em 79º posição, atrás de países como Senegal, Etiópia, Haiti, Uganda dentre outros. Esse resultado significa que o Brasil não é um bom lugar para se morrer… Aqui as pessoas morrem sofrendo muito, sofrimento esse que poderia ser evitado! Por isso a discussão de intervenções que possam contribuir para o alívio do sofrimento destas pessoas é de suma importância, e as substâncias psicodélicas têm se mostrado uma possibilidade interessante para este fim.
Você participou de um levantamento sobre estudos nesse campo, quais foram as informações que mais te surpreenderam?
Concluímos que as evidências avaliadas sugerem efeitos positivos das terapias assistidas por psicodélicos no controle de sintomas em pacientes com doenças graves, principalmente quanto aos sintomas de natureza psicológica e espiritual. Os resultados que mais me surpreenderam foram os referentes ao potencial destas substâncias para o tratamento de sintomas de ordem espiritual.
De acordo com nossos resultados, com relação à experiência espiritual ou existencial, os estudos relataram uma redução considerável no medo da morte dos pacientes após terapias assistidas por psicodélicos, com aumento da serenidade, paz e tranquilidade. Além disso, há evidências de melhora nos indicadores relacionados ao sentido da vida e otimismo, diminuição da desmoralização relacionada ao câncer e desesperança, redução do sofrimento existencial e melhora do bem-estar espiritual e do comportamento em relação à morte.
Como os cuidados paliativos são realizados atualmente?
De acordo com um esquema proposto pelo médico Eduardo Bruera, um dos grandes nomes do cuidado paliativo atualmente, há aqueles sintomas angustiantes que são mais urgentes (ou seja, que precisam ser tratados rapidamente, como por exemplo, a dor ou a falta de ar) e aqueles que são os mais importantes de serem abordados.
As necessidades relacionadas à dimensão espiritual do ser humano estão dentre aqueles sintomas que são mais importantes de serem tratados. A grande questão é que, a despeito do grande impacto que o sofrimento espiritual tem na vida de pessoas com doenças graves, os profissionais de saúde ainda sabem muito pouco sobre como diagnosticar estas demandas e como tratá-las.
O vínculo entre paciente e terapeuta é um fator vital para os resultados positivos?
Em vários dos estudos incluídos em nossa revisão, os autores afirmaram que a qualidade do encontro humano e a capacidade de estabelecimento de uma relação interpessoal terapêutica por parte do terapeuta são alguns dos fatores importantes para que as terapias assistidas por psicodélicos sejam bem-sucedidas. E na verdade, essas também são habilidades essenciais na abordagem dos cuidados paliativos.
A meu ver, é imprescindível que, além dos conhecimentos técnico-científicos necessários para se atuar tanto na área dos cuidados paliativos como na área das terapias assistidas por psicodélicos, os terapeutas e profissionais de saúde tenham habilidades de comunicação verbal e não-verbal (principalmente que saibam utilizar a escuta de forma terapêutica e compassiva) e de compaixão/motivação compassiva (perceber o sofrimento do outro e tomar uma atitude para aliviar este sofrimento) para lidar com as pessoas que vão chegar até eles.
Cicely Saunders dizia: “Eu me importo pelo fato de você ser você, me importo até o último dia da sua vida e faremos tudo o que estiver ao nosso alcance, não somente para ajudar você a morrer em paz, mas também para você viver até o dia da sua morte”. Porque os pacientes elegíveis para os cuidados paliativos e aquelas pessoas que vão em busca dos psicodélicos com intuito terapêutico, na maioria das vezes, são pessoas vulneráveis, às vezes passando pelo momento de maior sofrimento de suas vidas. São pessoas buscando ajuda para aliviar seu sofrimento. Elas vão trazer para o profissional de saúde a sua história, as suas feridas físicas e emocionais, e também aquilo que elas têm de mais sagrado.
Que, no fundo, é a própria vida, certo?
Em um outro estudo de revisão que estamos realizando no momento, em uma das pesquisas incluídas, um dos participantes relatou a utilização de psicodélicos (no caso, a ayahuasca) como forma de lidar com a morte da mãe. Sempre que penso nisso, me vem à mente o trecho de Êxodo 3:4-5 que diz: “Tira as sandálias dos teus pés, porque o lugar em que te encontras é uma terra santa”, no sentido de que como o terapeuta precisa entender que a história de vida daquela pessoa que está diante dele buscando por ajuda é algo sagrado, que inspira respeito, que é digno pelo simples fato de ser o que é. A vida do outro é algo sagrado, e ele está confiando em mim para cuidar do seu sofrimento! É algo muito bonito e de muita responsabilidade!
Como você acha que os psicodélicos nos ajudam a mudar a percepção sobre a morte?
A morte não é algo dissociado da vida, ela é parte da vida também. Só morre quem está vivo. Dois dos princípios dos cuidados paliativos são: afirmar a vida e considerar a morte como um processo normal, e nem apressar e nem adiar a morte. No início de 2022, foi publicado o “Report of the Lancet Commission on the Value of Death: bringing death back into life”. Neste relatório, se discute justamente a questão de que a morte e o morrer devem ser reconhecidos não apenas como algo normal, que faz parte da vida, mas como experiências valiosas. E me parece que os psicodélicos podem nos ajudar a nos aproximar mais desse entendimento.
Como?
Para mim a grande questão não são os psicodélicos em si, mas sim a possibilidade que eles nos dão de alcançar diferentes estados de consciência, como também nos permitem as práticas meditativas, contemplativas, por exemplo, e assim enxergar tanto a vida quanto a morte a partir de uma perspectiva totalmente nova. Há diversos relatos na literatura científica de que a experiência proporcionada pelo uso de substâncias psicodélicas está relacionada à diminuição do medo da morte e à aceitação do envelhecimento e da morte.
E isso tem tudo a ver com uma percepção mais espiritual da vida, certo?
Em um estudo coordenado pelo psicólogo Stephen Trichter, de 2006, que analisou participantes em uma cerimônia de ayahuasca, um dos presentes relatou o seguinte: “Pensei na morte como nunca tinha pensado antes. Não como o fim ou algo a se temer, mas sim como uma reunificação com o amor, a beleza e a verdade que estavam se manifestando ao meu redor, acima e através de mim”.
Os resultados de um estudo conduzido por Roland Griffiths, em 2017, demonstraram efeitos positivos da psilocibina sobre aspectos relacionados à espiritualidade como proximidade interpessoal, gratidão, significado, propósito da vida, perdão, transcendência da morte, experiências espirituais diárias, fé religiosa e enfrentamento.
Talvez a experiência psicodélica nos ajude a enxergar nossa própria história de vida a partir de um prisma diferente, talvez nos ajude a nos reconciliar com nossa própria história e a descobrir o sentido das nossas vidas, que muitas vezes nos passa despercebido, considerando a superficialidade na qual vivemos imersos a maior parte do tempo. Especialmente no fim da vida, alcançar essas coisas é de um valor inestimável.
Sobre a Psicodelicamente
A Psicodelicamente é uma revista digital independente de jornalismo psicodélico. Seu objetivo é atender a uma lacuna de informação no mercado editorial brasileiro a respeito desse tema, polêmico e controverso, com uma produção de conteúdos diversa e panorâmica. Combinando reportagens de profundidade e investigativas, notícias, entrevistas e artigos, a revista busca expandir as narrativas jornalísticas sobre drogas psicodélicas.
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