A linguagem verbal é uma das capacidades mais singulares de nós, seres humanos. Através dela, conseguimos nos comunicar de forma explícita e eficiente com outras pessoas, transmitir e registrar conhecimentos ou crenças. Mas há outras formas de comunicação mais automáticas, não verbais. Algumas emoções básicas podem ser reconhecidas só pelo contato visual com o rosto das pessoas e são, de certa forma, universais em diferentes culturas: felicidade, surpresa, raiva, medo, tristeza e desgosto. Como todos sabemos, não precisamos de um alerta verbal de que uma pessoa está com raiva para nos prepararmos para fugir ou enfrentá-la lutando; nem temos muita dificuldade em perceber a alegria alheia. Por isso, o reconhecimento de emoções favorece adaptarmos nosso comportamento para respondermos de forma adequada e na medida certa.
Os psicodélicos têm sido amplamente investigados para tratar alguns transtornos mentais, como ansiedade e depressão. Uma característica comum desses transtornos é um reconhecimento alterado de emoções básicas, como maior sensibilidade em reconhecer emoções negativas e positivas. Como exemplo, pessoas com ansiedade social identificam mais facilmente expressões faciais que contenham emoções, como medo, tristeza e felicidade. Os benzodiazepínicos, conhecidos como ansiolíticos (usados para reduzir a ansiedade), podem diminuir o reconhecimento de expressões de medo e alguns antidepressivos convencionais, como os inibidores seletivos de recaptação de serotonina (ISRS), podem “melhorar” o reconhecimento de emoções por expressões faciais antes mesmo que reduzam os sintomas de depressão. Então, pode ser que parte dos efeitos terapêuticos dessas substâncias ocorram por meio de tornar o reconhecimento de emoções mais “realista” (na medida “certa”) em pessoas que apresentam esses transtornos.
Baseado nessa discussão, Juliana Rocha e colaboradores da Universidade de São Paulo e da Espanha conduziram uma revisão sistemática para avaliar se os psicodélicos clássicos, aqueles que agem sobre os receptores de serotonina 5-HT2A, alteram a identificação de emoções ou as respostas cerebrais ao terem que reconhecer as emoções em expressões faciais (Rocha et al., 2019).
O estudo de Juliana M. Rocha e colaboradores, publicado no periódico científico Therapeutic Advances in Psychopharmacology.
Os autores reuniram resultados de sete estudos originais, cinco com psilocibina (princípio ativo dos cogumelos mágicos) e dois com LSD. O desenho experimental variou entre os estudos originais, mas a maioria deles foi controlado por placebo, uma substância sem efeito psicoativo, e duplo-cego (nem os pesquisadores, nem os voluntários sabiam qual substância era oferecida). Na maioria desses trabalhos, um grupo de voluntários saudáveis (sem transtornos psiquiátricos) recebeu em um dia psilocibina ou LSD e alguns dias ou semanas depois recebeu placebo, sendo possível comparar o efeito dessas substâncias nos mesmos participantes. O reconhecimento de emoções foi feito através da apresentação de imagens de rostos com expressões emocionais e alguns estudos avaliaram respostas cerebrais através de técnicas de eletrofisiologia ou neuroimagem.
Nos estudos avaliados, o reconhecimento de emoções foi feito através da apresentação de imagens de rostos com diferentes expressões emocionais.
Nos estudos avaliados, o achado mais consistente foi a diminuição do reconhecimento (número de acertos) de expressões de medo durante a experiência psicodélica induzida por psilocibina ou LSD em voluntários saudáveis. Em termos neurobiológicos, a dificuldade em reconhecer as expressões de medo foi acompanhada da redução da atividade de uma área cerebral envolvida com a codificação de faces e emoções em um dos estudos. Outros estudos verificaram que esses psicodélicos também reduziram a atividade de parte da amígdala, região do cérebro envolvida com respostas emocionais, ou de sua comunicação com outras regiões cerebrais quando os participantes visualizavam expressões negativas (medo e raiva) ou positivas (alegria).
O achado mais consistente foi a diminuição do reconhecimento de expressões de medo durante a experiência psicodélica induzida por psilocibina ou LSD. Além disso, esses mesmos psicodélicos também reduziram a atividade de parte da amígdala, região do cérebro envolvida com respostas emocionais.
Dois artigos acompanharam um mesmo grupo de pacientes com depressão moderada ou severa, resistente a tratamento, que reduziu os sintomas clínicos após receber duas doses de psilocibina em conjunto com psicoterapia. Um dia depois do tratamento – e não durante os efeitos da substância –, os cientistas verificaram que parte da amígdala dos pacientes estava mais responsiva quando estes foram expostos a expressões faciais neutras e expressões de medo e alegria. O interessante é que a maior resposta da amígdala durante a visualização do rosto amedrontado teve relação com a melhora clínica medida uma semana depois do tratamento com psilocibina. No outro trabalho, foi incluído separadamente um grupo de pessoas saudáveis que receberam placebo, ao invés da psilocibina no grupo depressão, para comparar a identificação das emoções. Antes do tratamento, os voluntários com depressão demoravam mais tempo do que os sem depressão para responder qual emoção estavam vendo, o que foi “normalizado” um mês após o psicoterapia com psilocibina. Ainda, essa melhora no tempo de identificação das emoções foi correlacionada com a redução dos sintomas de anedonia – perda ou redução da capacidade de sentir prazer, o que é característico de depressão mais grave.
Rocha et al. (2021) discutem na revisão sistemática que a psilocibina ou o LSD modificaram o padrão de reconhecer emoções negativas e que isso pode ser interpretado como benéfico, já que essa mudança foi correlacionada com aumento de humor positivo e efeitos ansiolíticos ou antidepressivos. Existem estudos que mostram que o MDMA, que está na fase final de pesquisa em humanos para tratar o transtorno de estresse pós-traumático, também diminui o reconhecimento de emoções negativas e a atividade da amígdala. De certa forma, existe uma semelhança entre o MDMA, os psicodélicos clássicos e os antidepressivos convencionais (ISRS principalmente): a maior ativação do sistema serotoninérgico. Os receptores de serotonina estão espalhados por regiões do cérebro envolvidas com regulação emocional – pode ser também dessa forma que essas substâncias afetem o padrão de identificação de emoções.
Ainda são poucos os estudos e, relativamente, poucos voluntários que participaram da investigação dos efeitos de psicodélicos clássicos sobre o reconhecimento de emoções através de expressões faciais. Pode ser que haja diferenças nesses efeitos entre pessoas saudáveis e pacientes com transtornos psiquiátricos, como o estudo com psilocibina em pacientes com depressão indicou – maior resposta da amígdala frente a faces de medo, o contrário de com pessoas saudáveis. Além disso, é preciso entender se esses efeitos ocorrem apenas durante a experiência psicodélica ou se as mudanças são persistentes.
São fortes os indícios de que alguns psicodélicos serão incorporados na clínica de psicologia e de psiquiatria nos próximos anos. Para além de melhor elucidar os mecanismos terapêuticos, estudar a influência das substâncias psicodélicas pode trazer reflexões importantes para outras áreas. Por exemplo, saber que essas substâncias podem reduzir a percepção de emoções negativas pode ter implicações importantes para o uso em contextos não seguros, uma vez que a avaliação inadequada do contexto pode favorecer que o usuário se coloque em maior risco.
Autora
Referência
Rocha, J. M., et al. (2019). Serotonergic hallucinogens and recognition of facial emotion expressions: a systematic review of the literature. Therapeutic Advances in Psychopharmacology, 9: 1–11.https://doi.org/10.1177/2045125319845774
Comments