Por Flávia Zacouteguy Boos, MS.
Em um post anterior, já discutimos o que são as substâncias psicodélicas, também conhecidas como perturbadoras, alucinógenas e enteógenas. Mas será que todas têm propriedades farmacológicas similares, a ponto de serem colocadas em uma única “caixinha”? A resposta é não, e neste texto vamos explorar como os psicodélicos são agrupados.
Antes disso, é importante destacar que os psicodélicos são substâncias psicoativas que alteram a forma de perceber a realidade, os próprios pensamentos e emoções, promovendo estados alterados de consciência. Todas essas funções são moduladas pelo cérebro, um dos mais complexos e fascinantes órgãos do corpo humano. Ele é formado por cerca de 86 bilhões de neurônios que se comunicam de forma constante, integrando e processando informações relevantes de dentro e de fora do corpo e participando do planejamento, tomada de decisões e ações motoras. Simplificando, essa “conversa” entre os neurônios funciona da seguinte maneira: um neurônio chamado pré-sináptico, quando é ativado, transmite uma “mensagem” e o neurônio pós-sináptico a “recebe”. Essa comunicação é chamada de sinapse — por isso o pré e pós-sináptico — e ela é química, geralmente. O neurônio pré-sináptico libera neurotransmissores (glutamato, GABA, serotonina, dopamina, noradrenalina, entre outros) que se ligam a receptores no neurônio pós-sináptico em um encaixe específico, normalmente chamado de “chave-fechadura”. A ligação neurotransmissor-receptor gera alterações no neurônio pós-sináptico, podendo este ficar mais ou menos ativo, expressar genes, criar ou eliminar sinapses com outros neurônios e assim por diante.
Ilustração de uma sinapse química.
Uma infinidade de substâncias exógenas (com origem externa ao corpo) – como os psicodélicos –, produzidas por fungos, plantas ou sintetizadas por seres humanos, se assemelham aos neurotransmissores que o cérebro produz e atuam sobre os mesmos receptores. Independentemente da forma como são ingeridos e absorvidos (ex., via oral, inalada, injetada, etc.), os psicodélicos são levados pelo sangue até o cérebro, onde suas moléculas têm afinidade por alvos presentes nos neurônios. Exemplos desses alvos são os receptores e as proteínas transportadoras que recaptam – ou “recolhem” – neurotransmissores após a sua liberação. Pensando no alvo molecular, os psicodélicos são divididos em dois grandes grupos: os clássicos e os atípicos.
No caso dos psicodélicos clássicos, também conhecidos como típicos, suas moléculas se assemelham principalmente à serotonina e agem especialmente em receptores do tipo 5-HT2A. São eles a dietilamida do ácido lisérgico (LSD), um psicodélico semissintético e o psicodélico clássico mais potente; a mescalina, presente em cactos como o Peyote e o São Pedro; a dimetiltriptamina (DMT), encontrado na Ayahuasca; e a psilocibina, dos cogumelos “mágicos”. O receptor 5-HT2A não é o único alvo dessas substâncias, mas sabe-se que é através da sua ativação que os efeitos psicodélicos são mediados. Como exemplo, o estudo suíço de Pokorny et al. (2019), realizado com 24 voluntários, mostrou que o fornecimento prévio de uma substância que bloqueava os receptores 5-HT2A foi capaz de prevenir os efeitos psicodélicos subjetivos do LSD (100µg).
Já os psicodélicos atípicos incluem substâncias com mecanismos de ação diversos. Alguns autores preferem subdividir os atípicos em 4 subgrupos, sendo eles: os dissociativos, os empatógenos, os canabinóides e os propriamente atípicos (Reiff et al., 2020). Os dissociativos incluem as substâncias sintéticas fenciclidina e cetamina (ou quetamina), ambas usadas antigamente como anestésicos em humanos, cujo mecanismo de ação principal é a inibição de receptores de glutamato do tipo NMDA. O representante principal dos empatógenos é o MDMA, este que é considerado uma anfetamina com efeitos psicodélicos leves. O MDMA age principalmente aumentando a transmissão serotoninérgica por dois mecanismos distintos, pelo aumento da sua liberação e pela inibição dos transportadores que recaptam a serotonina depois de liberada. Além disso, ele também aumenta a disponibilidade de noradrenalina e dopamina por mecanismos semelhantes. Os canabinóides incluem principalmente o tetra-hidrocanabinol (THC), encontrado na Cannabis mas também em substâncias canabinóides sintéticas. O THC é um agonista parcial de receptores endocanabinóides do tipo CB1 e CB2 – ou seja, ativam esses receptores –, sendo que seus efeitos psicodélicos são mediados por CB1.
Já os psicodélicos propriamente atípicos englobam substâncias com mecanismos distintos. A salvinorina A é encontrada na sálvia (Salvia divinorum, espécie diferente da que é utilizada na culinária como tempero) e age em receptores opioides do tipo kappa. A ibogaína, encontrada na raiz da planta africana Iboga, age em múltiplos alvos, como em receptores opioides, glutamatérgicos e colinérgicos – os receptores para acetilcolina –, embora também ative os receptores 5-HT2A. Por último, estão os anticolinérgicos que, como o nome revela, bloqueiam receptores colinérgicos, principalmente os muscarínicos. Como exemplo, temos a atropina e a escopolamina, que são encontradas nas plantas conhecidas como beladona (Atropa belladonna) e trombeteira (Brugmansia spp.), além da muscarina encontrada nos cogumelos Amanita muscaria – aquele clássico cogumelo vermelho com bolinhas brancas.
A classificação de drogas psicodélicas é feita por pesquisadores que buscam agrupá-las conforme determinados critérios. Se por um lado há consenso em agrupar os psicodélicos clássicos, por outro nem todos concordam com o grande grupo de substâncias atípicas apresentado aqui. Por exemplo, alguns autores classificam os canabinóides como um grupo à parte e ainda o MDMA como uma substância estimulante, junto com a cocaína e as anfetaminas. De qualquer forma, existem diferenças importantes entre eles. Alguns psicodélicos atípicos, com exceção da Cannabis, apresentam alta toxicidade e podem levar à óbito dependendo da dose utilizada, como a ibogaína e os anticolinérgicos. Enquanto os psicodélicos clássicos – mescalina, LSD, DMT e psilocibina – são considerados drogas com baixo risco, principalmente porque não produzem grandes alterações cardiorrespiratórias (normalmente o motivo de mortes por overdoses), não geram uso compulsivo ou abstinência e são fracas as evidências de que induzam dependência (Rucker et al., 2018). Essas características contribuem para que os psicodélicos sejam cada vez mais estudados em contextos de pesquisa clínica de forma ética e segura, explorando os seus efeitos subjetivos e potenciais terapêuticos.
Referências
Carlini E.A., & Maia L.O. (2017). Plant and Fungal Hallucinogens as Toxic and Therapeutic Agents. In: Gopalakrishnakone P., Carlini C., Ligabue-Braun R. (eds) Plant Toxins. Toxinology. Springer, Dordrecht. https://doi.org/10.1007/978-94-007-6464-4_6
Pokorny, T. et al. (2019). LSD acutely impairs working memory, executive functions, and cognitive flexibility, but not risk based decision-making. Psychological Medicine, 50(10): 2255-2264. https://doi.org/10.1017/
Reiff, C. M. et al. (2020). Psychedelics and Psychedelic-Assisted Psychotherapy. Am J Psychiatry, 177(5): 391-410. https://doi.org/10.1176/appi.ajp.2019.19010035
Rucker, J. J. H., Iliff, J., & Nutt, D.J. (2018). Psychiatry & the psychedelic drugs. Past, present & future. Neuropharmacology, 142, 200-218. https://doi.org/10.1016/j.neuropharm.2017.12.040