Resumo: Estudos recentes indicam que a forma na qual a ayahuasca é armazenada pode ter impacto nas suas propriedades químicas. Enquanto a DMT é uma molécula mais estável quando submetida a diferentes contextos de armazenamento, as beta-carbolinas, de forma geral, apresentam maiores níveis de alterações, especialmente quando armazenada por longos períodos e em temperaturas mais altas.
Você já se perguntou como é uma forma adequada de armazenar a ayahuasca? Enquanto pesquisas investigando as propriedades químicas e a estabilidade da ayahuasca ainda são relativamente escassas, há uma crescente produção científica sobre o tema.
Caso você ainda não saiba, o efeito psicoativo da ayahuasca é resultado de um processo sinérgico de componentes presentes em diferentes plantas amazônicas. No Brasil, a ayahuasca é mais comumente feita a partir da decocção (fervura em água) das folhas do arbusto Psychotria viridis juntamente aos pedaços do caule do cipó Banisteriopsis caapi.
No Brasil, a ayahuasca é mais comumente feita a partir da decocção (fervura em água) das folhas do arbusto Psychotria viridis (esquerda), juntamente aos pedaços do caule e do cipó Banisteriopsis caapi (direita).
A principal molécula presente na folha da Psychotria viridis é a N,N-dimetiltriptamina, mais conhecida como DMT – um composto essencial para que a bebida tenha os seus efeitos psicoativos. Já o cipó contém diversos alcaloides tipo beta-carbolinas, sendo que a harmina, a harmalina e a tetrahidroharmina são as mais estudadas.
Além de haver evidências de que algumas beta-carbolinas possuam efeitos psicoativos, uma importante ação dessas moléculas é inibir a degradação da DMT no trato digestório, possibilitando assim que a mesma alcance o cérebro e exerça seus efeitos psicoativos. Dessa maneira, as beta-carbolinas são essenciais para modular os efeitos da ayahuasca.
Nesse contexto de sinergia química extremamente complexa, compreender a estabilidade dos componentes da ayahuasca, especialmente quando armazenada, é importante tanto para a comunidade científica quanto para a comunidade ayahuasqueira.
Alguns estudos realizados principalmente em contextos de pesquisa clínica já analisaram as propriedades químicas da ayahuasca quando armazenada por longos períodos. Porém, um estudo mais abrangente sobre o tema foi conduzido na Universidade de São Paulo (USP) recentemente. Esse estudo investigou a estabilidade química dos principais componentes da ayahuasca em diferentes condições, as quais podem ser encontradas tanto no meio científico quanto no meio ayahuasqueiro.
A primeira condição investigada foi o armazenamento da ayahuasca em geladeira (4-8°C) durante um ano, utilizando tanto recipientes de plástico quanto de vidro para guardar a bebida. Nesse experimento, as concentrações de harmina e DMT se mostraram estáveis durante todo o período investigado – ou seja, não variaram mais do que 20%. Em contrapartida, as concentrações tanto de harmalina quanto de tetrahidroharmina apresentaram redução, que chegaram a até 70% no caso da tetrahidroharmina. No que diz respeito aos recipientes, não foram encontradas diferenças entre o uso de material de vidro ou de plástico, indicando que ambos são igualmente eficazes para armazenar a ayahuasca.
A segunda condição investigou amostras do chá submetidas a uma temperatura de 37°C durante sete dias, com o objetivo de simular um transporte pelos correios. Nessas condições, o chá não apresentou alterações significativas nas concentrações de DMT e tetrahidroharmina, porém, houve uma tendência de diminuição nos níveis da harmina. Curiosamente, a harmalina apresentou bastante oscilação nessas condições, sendo que algumas amostras apresentaram diminuição e outras aumento das concentrações desse composto onde foi identificado em diferentes amostras tanto uma diminuição quanto um aumento de seus níveis.
O terceiro e último experimento submeteu a ayahuasca a três ciclos de congelamento e descongelamento. Nessa condição, não foi identificado diminuição significativa de qualquer molécula nas amostras - ou seja, nenhuma molécula apresentou variações maiores que 20%. Porém, um modelo estatístico indicou uma tendência à diminuição de todos os compostos, inclusive da DMT, que até então tinha se mostrado estável nos outros experimentos, indicando que o processo de congelamento e descongelamento também pode ter impacto na composição química da ayahuasca.
O estudo investigou a estabilidade química de componentes da ayahuasca em diferentes condições: em geladeira (4-8°C) durante um ano, a 37°C durante sete dias e a três ciclos de congelamento e descongelamento (Imagem: Double Blind).
De maneira geral, esse estudo sugere que a DMT é a molécula mais estável dentre as moléculas estudadas na ayahuasca, enquanto que as beta-carbolinas são mais suscetíveis a variações. No entanto, todas as moléculas parecem sofrer um impacto quando expostas a temperaturas mais elevadas, por volta dos 30-40°C.
Enquanto essas variações químicas podem ocorrer devido à degradação natural das moléculas, ainda não está claro quais são os fatores mais importantes que influenciam esse processo.
É provável que a temperatura seja um fator preponderante, tendo em vista que outros estudos menos abrangentes também encontraram variações no perfil químico da ayahuasca quando exposta à temperatura ambiente por longos períodos. Além disso, existe uma hipótese de que algumas beta-carbolinas se transformem em outras por um processo químico dependente de temperaturas mais altas – isso explicaria o aumento nos níveis de harmalina em uma das amostras estudadas.
Além disso, a decantação dos compostos na bebida, que formam aquelas “borras” no fundo do recipiente, também pode ter um papel importante no perfil químico da ayahuasca, tendo em vista que já foi identificado a presença da harmina nesses resíduos. Outros fatores a serem considerados, porém ainda pouco estudados, é a presença ou ausência de luz onde a ayahuasca é armazenada ou até mesmo o pH da bebida.
De forma geral, é relativamente seguro afirmar que a ayahuasca, quando armazenada, apresenta alterações em sua estrutura química – especialmente se mantida em ambiente não refrigerado por longos períodos. Porém, ainda não está claro até que ponto essas alterações químicas se refletem (ou não) nos efeitos psicoativos da bebida, especialmente considerando que o processo de preparo do chá naturalmente envolve longos períodos onde a bebida é exposta a altas temperaturas.
A ayahuasca, quando armazenada, apresenta alterações em sua estrutura química, especialmente se mantida em ambiente não refrigerado por longos períodos.
É sabido por experiências empíricas que a ayahuasca permanece psicoativa mesmo quando armazenada por anos. Dessa forma, é seguro afirmar que as alterações químicas decorrentes do armazenamento não comprometem os efeitos psicoativos da bebida pelo menos por alguns poucos anos.
Enquanto a investigação das propriedades químicas da ayahuasca ainda é um campo emergente e possui muitas limitações, o estudo dessa área ressalta a enorme complexidade da ayahuasca através de uma perspectiva molecular. A forma de armazenar a ayahuasca pode ser mais um dentre vários outros processos, como as plantas utilizadas, condições climáticas e características da forma de preparação da bebida, que faz com que cada ayahuasca seja um psicodélico único.
Autor
Referências
Callaway, J. C. (2005). Various alkaloid profiles in decoctions of Banisteriopsis caapi. Journal of Psychoactive Drugs, 37(2):151–55. doi:10.1080/02791072.2005.10399796.
de Oliveira Silveira, G., et al. (2020). Stability Evaluation of DMT and Harmala Alkaloids in
dos Santos, C. M. D. (2021). Cultivo de Psychotria viridis e a sustentabilidade da ayahuasca. Ciência Psicodélica [internet]. Disponível em: https://www.cienciapsicodelica.com.br/post/cultivo-de-psychotria-viridis-e-a-sustentabilidade-da-ayahuasca (acessado em 17-06-2021)
McIlhenny, E. H., et al. (2009). Direct analysis of psychoactive tryptamine and harmala alkaloids in the Amazonian botanical medicine ayahuasca by liquid chromatography–electrospray ionization-tandem mass spectrometry. Journal of Chromatography A, 1216 (51):8960–68. doi:10.1016/j.chroma.2009.10.088
Rodríguez, L., et al. (2022). New Insights into the Chemical Composition of Ayahuasca. ACS Omega, 7(14), 12307-12317. doi:10.1021/acsomega.2c00795
Santos, B. W. L., et al. (2020). Biodiversity of β- carboline profile of Banisteriopsis caapi and ayahuasca, a plant and a brew with neuropharmacological potential. Plants (Basel), 9 (7). doi: 10.3390/plants9070870
Silveira, G. D. O., et al. (2020). Stability evaluation of DMT and harmala alkaloids in ayahuasca tea samples. Molecules, 25(9). doi: 10.3390/molecules25092072.